Dedicatórias

Em Junho de 1973, a população de Apúlia, descontente com a ocupação dos terrenos baldios de Cedovém e Pedrinhas, por parte de estranhos à terra e às actividades ligadas ao mar – pesca e apanha do sargaço – resolveu tomar em mãos a justiça, tocou o sino a rebate, e destruiu, a golpes de machado e picareta, vedações, muros e demais construções clandestinas daquela zona.

PEDRO HOMEM DE MELLO deslocou-se nesse mesmo dia a Apúlia para assistir, mais uma vez, ao ensaio dos “Sargaceiros”. E ouviu, atónito, e encantado, a narração dos acontecimentos do dia.

Logo ali lhe surgiu a inspiração… e fez um poema!

 

Dias depois, escrevia:

 

“Minha Senhora:

Ainda sob a comovedora impressão que me deixou a coragem dos Sargaceiros (- os “meus “Sargaceiros ” é como hoje em dia lhes chamo!) tenho a honra de lhe enviar o poema “Apúlia” com a forma “definitiva”…

 

APÚLIA

Ó praia azul, das mãos de El-Rei herdada
Quem te roubar não deu à Pátria ouvidos.
E os filhos dela, em branca revoada,
Exigem os espólios, devolvidos.

Nestas paragens há bezerros de oiro
Que, em vão, procuram ébrios, ajoilhados.
O Povo, aqui, é principesco e loiro
E guarda o culto dos antepassados.

Apúlia eterna! Apúlia independente!
Muro a deter toda a invasão secreta.
Não sou ninguém, mas sou alguém que sente
Em vós, Irmãos, minha alma de poeta.

Deixem-nos, sós, viver livres, ao menos,
Se deram vida (a sua vida!) ao mar.
Ai! Sargaceiros já não têm terrenos
Onde os seus barcos possam descansar!

 

Pedro Homem de Mello
Junho de 1973

 

 

SARGACEIRO

De pés descalços pisando a areia em louco correr
esgaça a garganta até enrouquecer:
— Argaço!… Argaço!…
E o eco traçado
nas gotas de orvalho avança veloz.
O olhar cortado
na ânsia do mar prende-lhe a voz.
O vício das ondas
gravado no peito
fá-lo sonhar.
E o mar sem fim, celeiro do mundo,
começa a chamar:
— Sargaceiro?!… Sargaceiro?!..
São redes no ar,
gravetos na mão,
taborra espalhada,
enrolada
no chão.

O silêncio dos gritos
abafados no peito
resistem às ondas,
correntes do mar.
Não há frio nem sol
que o faça parar,
não há chuva nem vento
capaz de o aguentar!
E a branqueta suada
de sal do mar
mergulha no tempo sem descansar…

É sol quebrado,
é noite escura,
de rosto cansado
mas mão segura,
furando as ondas,
gemendo forças,
calcando dores,
sofrendo o pão,
aguenta o braço no galhapão!

Vai longo o luar!
Os olhos vidrados do sono perdido
devoram o manjar
do arrasto estendido.
E o monstro?!
Nem geme!…
Espremido, da luta,
ressona cansado
espelhando o luar!…
Mas em jeito de dar,
prenhe de emoção,
num gesto fiel ao Lobo do mar,
emocionado,
esgotado
por fim,
beija-lhe os pés
e despede-se assim:
— Sargaceiro?!… Sargaceiro?!…

 

Manuel Alberto Moreda
Abril de 1986